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A História Surpreendente da Identificação por Voz em Casos Criminais

  • Foto do escritor: Adriano Miranda
    Adriano Miranda
  • 7 de abr.
  • 4 min de leitura

Quando pensamos em identificação por voz em investigações criminais, logo imaginamos tecnologias de ponta, gravações analisadas em laboratórios sofisticados e softwares que transformam sons em provas. Mas a verdade é que essa prática tem raízes muito mais antigas — talvez até milenares.


Muito Antes da Tecnologia

Desde tempos antigos, testemunhas auditivas — pessoas que ouviram, mas não viram o criminoso — foram essenciais para identificar suspeitos. Um caso marcante ocorreu em 1660, durante o julgamento de William Hulet, acusado de ter executado o rei Charles I. Uma testemunha, Richard Gittens, declarou ter reconhecido a voz do executor, cujo rosto estava encoberto, como sendo a de Hulet. O júri acreditou e o condenou à morte por alta traição.

Porém, antes que a sentença fosse cumprida, descobriu-se que o verdadeiro executor era o carrasco oficial, que acabou confessando o crime. Hulet foi libertado. Este é um dos primeiros registros de erro de identificação por voz — um fenômeno que, surpreendentemente, ainda ocorre mesmo com os avanços modernos.


O Caso Lindbergh e o Poder da Memória Auditiva

Avançando no tempo, outro episódio famoso foi o caso do sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh, em 1932. Durante o pagamento do resgate, Lindbergh ouviu (mas não viu) a voz do sequestrador. Dois anos e meio depois, ele afirmou reconhecer a voz do acusado Bruno Hauptmann como sendo a mesma.

Esse caso levantou uma questão crítica na fonética forense: por quanto tempo conseguimos lembrar da voz de alguém com precisão? 



Bruno Hauptmann (1899–1936) foi um carpinteiro alemão imigrante ilegal com antecedentes criminais que foi condenado pelo sequestro e assassinato do primeiro filho de Charles Lindbergh nos Estados Unidos. Ele foi executado na cadeira elétrica em 3 de abril de 1936, após ser considerado culpado pelo sequestro de Lindbergh
Bruno Hauptmann (1899–1936) foi um carpinteiro alemão imigrante ilegal com antecedentes criminais que foi condenado pelo sequestro e assassinato do primeiro filho de Charles Lindbergh nos Estados Unidos. Ele foi executado na cadeira elétrica em 3 de abril de 1936, após ser considerado culpado pelo sequestro de Lindbergh

A memória auditiva pode ser falha, especialmente com o passar do tempo, o que coloca em xeque a confiabilidade de testemunhos baseados apenas em reconhecimento vocal.


A Revolução dos Equipamentos: O Surgimento do Espectrógrafo

O desenvolvimento de ferramentas para analisar a fala começou a tomar forma com o advento do telefone e dos primeiros equipamentos de gravação. Um marco importante foi a invenção do espectrógrafo, nos laboratórios Bell na década de 1930, inspirado nas ideias de Steinberg (1934). Essa ferramenta permitia visualizar padrões sonoros — os chamados “voiceprints” — e foi inicialmente pensada para estudos fonéticos e como auxílio para deficientes auditivos e estudantes de línguas estrangeiras.



Espectrógrafo Bell Labs 1930
Espectrógrafo Bell Labs 1930

Curiosamente, durante a Segunda Guerra Mundial, o projeto foi classificado como sigiloso. Após o conflito, foram revelados indícios de que o verdadeiro objetivo poderia ter sido o desenvolvimento de uma técnica militar de identificação de locutores — especialmente para rastrear operadores de rádio inimigos (Meuwly, 2003).


A União Soviética e a “Ciência da Fonosopia”

Do outro lado da Guerra Fria, a União Soviética também investia em tecnologias semelhantes, embora muito pouco tenha sido documentado. A principal fonte que temos sobre isso é o romance O Primeiro Círculo, de Aleksandr Solzhenitsyn. A trama se passa em uma prisão especial para cientistas em Moscou, em 1949.

No livro, um grupo de pesquisadores é encarregado de identificar o autor de uma ligação interceptada usando amostras de voz dos suspeitos. Com apenas dois dias para concluir a tarefa — e a ameaça de deportação para a Sibéria — eles obtêm sucesso parcial. A empolgação com os primeiros resultados levou à seguinte afirmação no romance:

“A ciência da fonoscopia, nascida hoje, 26 de dezembro de 1949, tem um núcleo racional.” (Rubin, personagem do livro)

Eles chegaram a imaginar um futuro em que uma biblioteca de "impressões vocais" pudesse ser usada como as digitais: bastaria comparar a gravação de um crime com os arquivos e identificar o culpado.


De Ficção à Realidade?

Apesar da aparência quase fictícia, muito do que Solzhenitsyn narra reflete o estado real da pesquisa naquele período. E ainda hoje, em muitos países do Leste Europeu, o termo fonoscopia continua sendo usado para designar a fonética forense.


A história da identificação por voz mistura ciência, guerra, justiça e até literatura. Ela nos lembra que, embora a tecnologia evolua, os desafios — como o erro humano e a subjetividade da audição — continuam presentes.


Referências Bibliográficas

  • Grey, G. and G. A. Kopp (1944). Voiceprint identification. Bell Telephone Laboratories Report: 1–14.

  • Hollien, Harry. (2002). Forensic Voice Identification. San Diego, CA: Academic Press. (Ch. 2)

  • Kopp, G. A. and H. C. Green (1946). Basic phonetic principles of visible speech. Journal of the Acoustical Society of America 18: 74–89.

  • Meuwly, D. (2003). Le mythe de « L’empreinte vocale » (I). Revue internationale de criminologie et de police technique et scientifique 56(2): 219–236.

  • Potter, R. (1945). Visible patterns of speech. Science, November: 463–470.

  • Solzhenitsyn, A. I. (1968). The First Circle (T. P. Whitney, Transl.). Evanston, Ill: Northwestern University Press.

  • Steinberg, J. C. and N. R. French (1946). The portrayal of visible speech. Journal of the Acoustical Society of America 18: 4–18.

 
 
 

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