A História Surpreendente da Identificação por Voz em Casos Criminais
- Adriano Miranda
- 7 de abr.
- 4 min de leitura
Quando pensamos em identificação por voz em investigações criminais, logo imaginamos tecnologias de ponta, gravações analisadas em laboratórios sofisticados e softwares que transformam sons em provas. Mas a verdade é que essa prática tem raízes muito mais antigas — talvez até milenares.
Muito Antes da Tecnologia
Desde tempos antigos, testemunhas auditivas — pessoas que ouviram, mas não viram o criminoso — foram essenciais para identificar suspeitos. Um caso marcante ocorreu em 1660, durante o julgamento de William Hulet, acusado de ter executado o rei Charles I. Uma testemunha, Richard Gittens, declarou ter reconhecido a voz do executor, cujo rosto estava encoberto, como sendo a de Hulet. O júri acreditou e o condenou à morte por alta traição.
Porém, antes que a sentença fosse cumprida, descobriu-se que o verdadeiro executor era o carrasco oficial, que acabou confessando o crime. Hulet foi libertado. Este é um dos primeiros registros de erro de identificação por voz — um fenômeno que, surpreendentemente, ainda ocorre mesmo com os avanços modernos.
O Caso Lindbergh e o Poder da Memória Auditiva
Avançando no tempo, outro episódio famoso foi o caso do sequestro do filho do aviador Charles Lindbergh, em 1932. Durante o pagamento do resgate, Lindbergh ouviu (mas não viu) a voz do sequestrador. Dois anos e meio depois, ele afirmou reconhecer a voz do acusado Bruno Hauptmann como sendo a mesma.
Esse caso levantou uma questão crítica na fonética forense: por quanto tempo conseguimos lembrar da voz de alguém com precisão?

A memória auditiva pode ser falha, especialmente com o passar do tempo, o que coloca em xeque a confiabilidade de testemunhos baseados apenas em reconhecimento vocal.
A Revolução dos Equipamentos: O Surgimento do Espectrógrafo
O desenvolvimento de ferramentas para analisar a fala começou a tomar forma com o advento do telefone e dos primeiros equipamentos de gravação. Um marco importante foi a invenção do espectrógrafo, nos laboratórios Bell na década de 1930, inspirado nas ideias de Steinberg (1934). Essa ferramenta permitia visualizar padrões sonoros — os chamados “voiceprints” — e foi inicialmente pensada para estudos fonéticos e como auxílio para deficientes auditivos e estudantes de línguas estrangeiras.

Curiosamente, durante a Segunda Guerra Mundial, o projeto foi classificado como sigiloso. Após o conflito, foram revelados indícios de que o verdadeiro objetivo poderia ter sido o desenvolvimento de uma técnica militar de identificação de locutores — especialmente para rastrear operadores de rádio inimigos (Meuwly, 2003).
A União Soviética e a “Ciência da Fonosopia”
Do outro lado da Guerra Fria, a União Soviética também investia em tecnologias semelhantes, embora muito pouco tenha sido documentado. A principal fonte que temos sobre isso é o romance O Primeiro Círculo, de Aleksandr Solzhenitsyn. A trama se passa em uma prisão especial para cientistas em Moscou, em 1949.
No livro, um grupo de pesquisadores é encarregado de identificar o autor de uma ligação interceptada usando amostras de voz dos suspeitos. Com apenas dois dias para concluir a tarefa — e a ameaça de deportação para a Sibéria — eles obtêm sucesso parcial. A empolgação com os primeiros resultados levou à seguinte afirmação no romance:
“A ciência da fonoscopia, nascida hoje, 26 de dezembro de 1949, tem um núcleo racional.” (Rubin, personagem do livro)
Eles chegaram a imaginar um futuro em que uma biblioteca de "impressões vocais" pudesse ser usada como as digitais: bastaria comparar a gravação de um crime com os arquivos e identificar o culpado.
De Ficção à Realidade?
Apesar da aparência quase fictícia, muito do que Solzhenitsyn narra reflete o estado real da pesquisa naquele período. E ainda hoje, em muitos países do Leste Europeu, o termo fonoscopia continua sendo usado para designar a fonética forense.
A história da identificação por voz mistura ciência, guerra, justiça e até literatura. Ela nos lembra que, embora a tecnologia evolua, os desafios — como o erro humano e a subjetividade da audição — continuam presentes.
Referências Bibliográficas
Grey, G. and G. A. Kopp (1944). Voiceprint identification. Bell Telephone Laboratories Report: 1–14.
Hollien, Harry. (2002). Forensic Voice Identification. San Diego, CA: Academic Press. (Ch. 2)
Kopp, G. A. and H. C. Green (1946). Basic phonetic principles of visible speech. Journal of the Acoustical Society of America 18: 74–89.
Meuwly, D. (2003). Le mythe de « L’empreinte vocale » (I). Revue internationale de criminologie et de police technique et scientifique 56(2): 219–236.
Potter, R. (1945). Visible patterns of speech. Science, November: 463–470.
Solzhenitsyn, A. I. (1968). The First Circle (T. P. Whitney, Transl.). Evanston, Ill: Northwestern University Press.
Steinberg, J. C. and N. R. French (1946). The portrayal of visible speech. Journal of the Acoustical Society of America 18: 4–18.




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