A voz como evidência: a complexidade da perícia forense
- Adriano Miranda
- 17 de set.
- 3 min de leitura
Em filmes e séries, a "impressão vocal" é frequentemente retratada como uma biometria única e infalível, capaz de identificar qualquer pessoa com uma precisão absoluta. No entanto, a realidade da perícia forense de voz é bem diferente, e muito mais fascinante. A voz humana não é como uma impressão digital, imutável e inconfundível. Pelo contrário, ela é dinâmica, moldada por uma complexa combinação de fatores fisiológicos e comportamentais.
No campo da Fonética Forense, a identificação de falantes é um exame meticuloso que se baseia na comparação de duas amostras de fala para determinar se foram produzidas pela mesma pessoa. Para chegar a uma conclusão robusta e cientificamente embasada, o perito utiliza uma metodologia que associa dois tipos de análise complementares.

Análise Perceptivo-Auditiva: O Ouvido Treinado do Perito
A primeira etapa do exame é a análise perceptivo-auditiva. Considerada o padrão-ouro na área , ela se baseia na percepção e no conhecimento técnico do perito sobre a produção da voz e da fala. O profissional vai além do que se ouve, buscando delinear um perfil comunicativo completo do indivíduo.
A perícia avalia uma série de características da fala e da voz, como:
Qualidade vocal: Se a voz é rouca, soprosa, áspera ou neutra.
Pitch: A percepção do tom da voz, que pode ser agudo, médio ou grave.
Loudness: A sensação da intensidade, classificando a voz como forte, fraca ou normal.
Prosódia: A entonação, o ritmo e a acentuação da fala.
Articulação e Pronúncia: Como os sons são ajustados e produzidos pelos órgãos fonoarticulatórios, como lábios e língua.
Dialeto e Socioleto: As variações linguísticas e sotaques que podem ser característicos de uma região ou grupo social.
Idioleto: As marcas de fala particulares de um indivíduo, como o uso recorrente de certas expressões.
Análise Acústica: A Ciência por Trás do Som
Complementando a percepção auditiva, a análise acústica investiga as propriedades físicas do som. Para isso, o perito utiliza softwares especializados, como o Praat, que transformam as ondas sonoras em dados visuais e quantitativos. Essa abordagem é crucial, pois, apesar de um ouvido humano poder ser enganado, a análise acústica pode revelar diferenças significativas que a audição não detecta.
Nessa etapa, o perito examina parâmetros como:
Frequência Fundamental (F0): O número de vibrações das pregas vocais por segundo, que se correlaciona diretamente com o pitch (tom) da voz. É um elemento importante para a identificação, já que é influenciado por características fisiológicas como o tamanho e a densidade das pregas vocais.
Formantes: Os picos de energia que se concentram em regiões do espectro sonoro e são essenciais para caracterizar as vogais e reconhecer as características da fala. Os três primeiros formantes (F1, F2 e F3) são os mais relevantes.
Exemplo de Aplicação Prática: Imagine que em uma amostra questionada, a pessoa diz a palavra "tá". Na análise acústica, o perito pode verificar a frequência fundamental da vogal /a/. A amostra questionada pode ter uma F0 de 230Hz, enquanto a amostra padrão do suspeito, uma F0 de 174Hz. O perito também compara os formantes. Se a amostra questionada tem um F1 de 690Hz e a amostra padrão um F1 de 547Hz, isso pode indicar uma diferença perceptível. No final, uma tabela comparativa é criada para facilitar a visualização de todas as convergências e divergências entre as amostras.
A Coleta de Evidências: Amostra Questionada vs. Amostra Padrão
Para que o exame de identificação de falantes seja possível, é essencial ter duas amostras de voz.
Amostra Questionada: É a evidência de áudio cuja autoria é desconhecida. Ela pode ser uma gravação de interceptação telefônica ou uma gravação ambiental.
Amostra Padrão: É a gravação da voz do indivíduo suspeito. O ideal é que sua coleta seja feita em uma diligência pericial, com a presença das partes e seus representantes legais, em um ambiente controlado e silencioso. O perito deve utilizar técnicas para incentivar a fala espontânea, como a leitura de frases ou uma conversa sobre o contexto do processo.
Um dos maiores desafios da perícia é lidar com fatores que podem alterar a voz do indivíduo, como ruídos de fundo, o estado emocional (raiva, estresse), cansaço, gripes e, principalmente, disfarces vocais. O perito deve estar atento a todas essas variáveis, pois elas podem comprometer a identificação.
A conclusão do exame de identificação de falantes não é sempre decisiva. Em muitos casos, o laudo pericial irá indicar se existem fortes elementos de correspondência ou diferença entre as amostras, e até que ponto o resultado suporta ou contradiz a hipótese de que as vozes pertencem à mesma pessoa.




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